Da Escravidão à Resistência: quando a Lei é Silenciosa, a Luta Grita
Em um passado não tão distante, mesmo após leis proibindo o tráfico negreiro, os navios seguiam cruzando o Atlântico com corpos acorrentados. A história do navio Wanderer, que em 1858 partiu da Carolina do Sul rumo à África para trazer 487 cativos, escancara a contradição entre a letra da lei e a prática institucional. Dos embarcados, apenas 409 sobreviveram à travessia. Foram vendidos como mercadoria humana em solo americano, mesmo após mais de meio século da proibição formal do tráfico.
O capitão Nicholas Brown e seus cúmplices foram presos e julgados, mas absolvidos — num claro retrato de como a justiça silenciava diante dos interesses econômicos e racistas da elite. A legalidade, nesse caso, era só aparência.
Do outro lado do Atlântico, no Brasil de 1884, a história se desenhava de forma diferente. No Ceará, um homem do povo se recusava a compactuar com o tráfico interprovincial de escravizados. Francisco José do Nascimento, o "Dragão do Mar", liderou os jangadeiros em um ato histórico: se negaram a transportar escravos do Ceará para o Sul do país, onde ainda eram vendidos mesmo às vésperas da abolição oficial. Seu gesto de coragem, eternizado na gravura de Ângelo Agostini, transformou jangadas em barcos da liberdade, enfrentando a omissão do Estado com a força da dignidade.
Esses dois episódios, separados por oceanos e sistemas jurídicos distintos, apontam uma mesma ferida: a ineficiência — e muitas vezes, a conivência — da lei diante das estruturas de opressão racial.
E hoje, o que mudou?
Mais de um século depois, o grito dos que resistem continua ecoando. Ainda que tenhamos leis contra o racismo, a população negra segue sendo a mais assassinada, encarcerada e excluída. A diferença entre o direito no papel e sua aplicação concreta é visível nos becos, nas favelas, nas fronteiras invisíveis do preconceito.
Os exemplos de Francisco Nascimento e da denúncia contra o Wanderer mostram que a luta por justiça racial nunca dependeu apenas da lei, mas da ação coletiva e da coragem de enfrentar o sistema.
Em tempos em que vozes negras seguem sendo silenciadas, que a memória desses atos de resistência nos inspire a seguir — com os pés firmes no presente e os olhos voltados para um futuro mais justo.
"Quando a Lei Cala, a Luta Grita"
Por Osvaldino Vieira de Santana
15 de junho de 2025
Num mar de silêncio e correntes,
O navio partiu sorrateiro,
Levava vidas em porões ardentes,
Num tráfico velho, sorrindo traiçoeiro.
A lei, escrita há cinquenta anos,
Proibia o horror, a travessia.
Mas Brown, Corrie e Farnum, humanos?
Fizeram da dor sua mercadoria.
No Congo embarcaram os sonhos calados,
No sul, os venderam por ouro e poder.
Julgados? Sim. Condenados? Jamais.
A justiça hesita quando é pra valer.
Mas no Ceará, um homem do mar,
Com mãos calejadas e alma febril,
Francisco Nascimento se negou a remar
O barco da dor para o sul do Brasil.
"Na minha jangada não vai mais ninguém
Que tenha acorrentado o próprio destino.
Não levo irmãos para o cativeiro, amém.
Sou livre no peito, sou povo, sou sino!"
A vela escrita de "Libertadora",
No traço firme de Agostini, tremula.
Lembrança viva que ainda ecoa
Na pele negra que a dor acumula.
Hoje, os grilhões mudaram de forma,
Mas seguem apertando o mesmo punho.
A bala, a cela, a cerca que deforma
O sonho preto, em pleno junho.
Que cada jangada que se negar ao medo
Seja lembrança, farol, direção.
E quando a lei for só silêncio e segredo,
Que grite alto a nossa indignação.