21-O Paradoxo da Fome e da Corrupção: A Exclusão Social no Brasil do Século XXI
Autor: Osvaldino Vieira de Santana, professor de História, especialista em política e estratégia Data: Salvador, 10 de Dezembro de 2024.
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Vivemos em um mundo que ostenta avanços tecnológicos sem precedentes. A produção agrícola, impulsionada pela Revolução Industrial e pelas inovações contemporâneas, atinge patamares inimagináveis. Máquinas modernas rasgam o solo, sementes geneticamente modificadas resistem às pragas e a meteorologia determina, hora a hora, as melhores condições para o plantio. A produtividade das lavouras supera, em muito, a capacidade de consumo da humanidade. Alimentos circulam pelo globo em navios gigantes e aviões de carga, consolidando um comércio que atravessa continentes.
Ainda assim, o drama da fome persiste, como uma ferida aberta em uma sociedade que se orgulha de seus avanços. As prateleiras dos supermercados estão cheias, mas suas gôndolas lotadas contrastam com os corredores vazios, onde consumidores caminham sem poder de compra. Enquanto uns sucumbem à obesidade e aos excessos, outros desfalecem sob o peso da escassez. Essa discrepância evidencia que o problema não está na produção, mas na lógica do sistema capitalista, que privilegia o lucro e a especulação em detrimento da dignidade humana.
Os textos apresentados abordam diferentes dimensões desse problema. Marta, no primeiro texto, traz à tona o aspecto humanitário e espiritual. Evoca a figura de Jesus multiplicando pães, símbolo de compaixão e partilha, em contraste com o consumismo vazio das festas natalinas. A fome que grassa nas ruas é tratada como invisível, silenciada pela indiferença de uma sociedade que aprendeu a desviar os olhos daqueles que imploram: “Dá-me de comer, eu tenho fome!”. O clamor é antigo, mas a resposta continua tardia.
Carlos Queiroz, no segundo texto, questiona a efetividade da caridade isolada. A doação de uma cesta básica, embora urgente e necessária em casos extremos, não promove mudanças estruturais. Sem políticas públicas que garantam direitos sociais e acompanhem a reinserção dos excluídos no tecido produtivo, a fome persiste. O assistencialismo paliativo perpetua a dependência e desvia o foco das mudanças necessárias.
No terceiro texto, o advogado e sociólogo Bruno Pamponet amplia a discussão ao destacar que a Justiça Social deve ser o pilar de qualquer sociedade. Segundo Pamponet, a caridade, entendida como mera distribuição de bens materiais, é uma visão equivocada. O que a sociedade precisa é garantir cidadania, acesso a direitos fundamentais, ao mínimo existencial e à distribuição das riquezas. Embora a igualdade absoluta seja inatingível, é urgente a busca por uma igualdade relativa, onde todos tenham acesso ao trabalho, lazer e dignidade. Pamponet ressalta ainda a importância da caridade moral como uma missão transformadora, sobretudo em um mundo onde até os mais ricos sofrem de um vazio existencial. O egoísmo, como ele bem descreve, é a maior chaga da humanidade.
O cenário econômico brasileiro agrava ainda mais a desigualdade. A concentração de renda no país é uma das mais perversas do mundo: seis brasileiros detêm mais riqueza do que a metade da população. E, como destaca a CNN Brasil, a política monetária do país, marcada pela alta dos juros, coloca o Brasil na contramão das principais economias globais. Enquanto Estados Unidos e Europa reduzem suas taxas para estimular a economia e combater a recessão, o Banco Central brasileiro mantém a Selic em patamares elevados, podendo chegar a 12%. Essa política, embora justificada como controle inflacionário, prejudica diretamente os mais pobres, que perdem o acesso ao crédito e enfrentam o aumento do desemprego e a carestia de alimentos.
Como se não bastasse a exclusão social gerada pela lógica do sistema econômico, o Brasil enfrenta o agravamento da corrupção institucionalizada por meio do chamado “Orçamento Secreto”. Segundo a Transparência Internacional, trata-se do maior esquema de corrupção da história brasileira e, possivelmente, do mundo. Bruno Brandão, diretor executivo da organização, aponta que o orçamento secreto eliminou os mecanismos tradicionais de controle e fiscalização, facilitando o desvio de dinheiro público “com um verniz de legalidade” e reduzindo os riscos dos agentes envolvidos. Comparado a esquemas anteriores como o mensalão e o petrolão, o orçamento secreto sofisticou a corrupção, tornando-a mais profunda e institucionalizada. Enquanto milhões de brasileiros padecem na fome, recursos públicos são apropriados indevidamente, perpetuando a desigualdade e desviando o foco das políticas sociais necessárias.
A coexistência desses fatores — fome, concentração de renda, juros elevados e corrupção — revela as entranhas de um sistema capitalista que prioriza o lucro e a acumulação de riquezas nas mãos de poucos. A produção agrícola não existe para saciar a fome, mas para satisfazer os interesses de um mercado especulativo. A política monetária não protege os pobres, mas favorece os rentistas. O orçamento público, em vez de ser destinado ao bem comum, torna-se alvo de desvios institucionalizados.
A fome, portanto, não é um problema de escassez, mas de distribuição. Como alertam Carlos Queiroz e Bruno Pamponet, é necessário ir além da caridade e buscar a construção de uma sociedade baseada em direitos, onde a riqueza gerada pelo trabalho coletivo seja redistribuída de maneira justa. O capitalismo, em sua lógica atual, segue acumulando riquezas com a força do trabalhador, mas deixando milhões à margem, invisíveis e esquecidos.
O Brasil precisa romper com esse ciclo. Garantir acesso a direitos fundamentais, combater a corrupção e redefinir suas prioridades econômicas são passos essenciais para construir um país onde ninguém precise implorar: “Dá-me de comer, eu tenho fome!”. Esse é o verdadeiro desafio ético, econômico e político do nosso tempo.
21A-
Dá-me de Comer
Autor: Osvaldino Vieira de Santana, 15/11/2024.
Na terra fértil, o pão abundante,
Mas a fome grita, silenciosa e profunda.
Máquinas rasgam, sementes brotam,
E os grãos viajam, mas poucos retornam.
O suor do homem, força de vida,
Gira o moinho da terra esquecida.
Produz-se o muito, consome-se o pouco,
Lucro é rei, e o pobre, um louco.
Prateleiras cheias, gôndolas fartas,
Mas as mãos vazias pedem esmolas nas portas.
Quem planta esperança e colhe aflição,
Vê a riqueza acumular-se em vão.
Seis têm mais do que milhões no Brasil,
Enquanto a fome atravessa o corpo febril.
Nas esquinas, entre luzes de festa,
Há um prato vazio e uma dor que não cessa.
O mercado especulativo, a bolsa comemora,
enquanto um filho no chão se desespera.
Cesta básica, caridade sem ação,
Não resolve a miséria, nem traz solução.
Juros sobem, a obrigação aperta,
O sonho se apaga, a vida seca
A mão que rouba do povo, em segredo,
Transforma justiça num teatro de medo.
Dá-me de comer, grita a criança,
No olhar perdido, morre a esperança.
Quem tem ouvidos, ouça a canção:
Devolver à mesa o pão da nação.
A justiça social, ponte tão frágil,
Deve ser feita, pois o tempo é ágil.
Que a riqueza do chão seja repartida,
E a fome se torna história esquecida.
Enquanto isso, ouve-se ainda,
A súplica que nunca finda:
"Nas ruas, no campo, na alma, na estrada,
Dá-me de comer, eu não tenho mais nada!"
21B
https://open.spotify.com/intl-pt/album/0ZxbcbdrDceU78YRhSGDzX?si=agLEmPMkRnWR6WpT4Z5lHg
👆Link música no gênero musical samba de protesto, adaptada do poema "Dá-me de Comer".